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A cidade onde cresci ficou parada no tempo. Num tempo anterior ao meu. Estaria a mentir se não dissesse que a cidade cresceu; Como as plantas crescem e invadem os espaços abandonados, um tipo de desenvolvimento actual e orgânico, quase natural, implantado na paisagem, substituindo umas coisas pelas outras, na tentativa de apagar pistas com a habituação do olhar; Quem fica, aceita este processo de modernização como natural, quem volta, desmascara-o na sua agressão luminosa de quem arranca páginas de livros de história. A alma, o que assina as ruas e as casas, é a mesma; essa entidade de outro tempo que se manifesta em tudo, a subverter as formas e a escurecer o betão e o vidro, numa cumplicidade moral de derrota colectiva; de resignação. Como o espaço vazio nos olhos dos velhos, usado no passado para guardar sonhos e expectativas, e hoje lugares de solidão e espera. Procurar sinais da felicidade de outrora, é um complexo processo de negação e inércia.

No meu tempo, todo o tempo era diferente. Culpa minha. Tudo era desejo e música. Não adianta ser hipócrita e adulterar episódios. Existiram outras coisas claro, mas estas seriam a que deixariam marcas mais profundas, que ficaram soltas e aos gritos nas sombras. Quando procuro uma porta ou espreito uma janela, não encontro sorrisos, mas feedback, culpa, prazer.

Por estas ruas não há gente de 72 a 76, uma geração inteira que desapareceu. Múltiplas são as razões desse fenómeno, nenhuma que se diga em voz alta por aqui.

O primeiro sabor que me veio á boca quando cá cheguei, em forma de lamina e frase, foi que aqui não se sonha. Mas não é verdade. Aqui sonha-se, mas os sonhos não têm a importância de outros lugares e idades. Aqui a realidade tem o peso de todo o passado, as pegadas dos que caíram estão espalhadas por todo o lado, fundas e negras, e daqui só se sai ferido da queda. Acidentes que te carimbam as possibilidades do mundo. A realidade facilmente te dá duas chapadas e te mete no lugar. Aqui havia de tudo, violadores, assassinos, homens que viravam bichos á noite, artistas, gigantes, animais selvagens, fadas...

Não conheço ninguém, os mais velhos morreram ou estão congelados numa abstração paralisante nas janelas, com os seus olhares rapaces, a sua forma vultúrida; os mais novos deixaram de ser tema, ter lugar, aqui. Do interior dos cafés tiraram as nossas mesas, dos nossos segredos fizeram cruzamentos, de lugares onde gente se matou ergueram bombas de gasolina, as nossas camas estão emparedadas na memoria dos nossos gritos, suspensas no ar, acima da velocidade dos carros. Ninguém fala de nós, do que fomos, do que fizemos. Principalmente do que fizemos.

Aqui descobri quase tudo, e o que ficou por dizer, chegou mais tarde, como uma desilusão cúmplice. Como se não tivesses terminado de ler o livro, e a vida te lembrasse, mais tarde, que sempre soubeste como acabava.


Voltei a casa, ás minhas ruas, aos lugares da minha guerra, ao berço do amor, o resultado chama-se “Ontem, disseste hoje.”